quarta-feira, setembro 29, 2004

Entrada livre



Por que é que eu gosto tanto do realizador Lars von Trier?

Diálogos reflexivos (1)

João cola-se ao chão. Baloiça com a areia. Sustenta-a nas mãos e deixa-a fugir com o vento. A mãe do João não deve gostar de areia. Prefere levantar a voz e dizer ao João que pare. Quieto! Mas o João não consegue resistir aos encantos de tais partículas. Continua. Enamorado pela areia. A mãe do João aproxima a boca do ouvido do João e diz-lhe:
- Daqui a pouco METO A MINHA MÃO NA TUA BOCA!
João estremece. Encolhe os ombros, fecha os olhos e fica. Sozinho.

segunda-feira, setembro 27, 2004

Ligar o televisor.

Pego no perna. Pego no pé. Dou um triplo salto no ar. Bato com a cabeça no chão. Catrapum. Pum. Pum. Fico sem pensar... Agarro-me à televisão. Presa. Fixa. Na mente. A olhar. Malabaristas. Mágicos. Controcionistas. Mostram o seu valor. Exemplarmente colocados à direita ou à esquerda. Misturam-se com palhaços, disfarçados com enormes gravatas ou laços.
Fico atenta. Falo para o televisor. Será que algum deles me ouve? Digo: Parvalhão, estúpido e estupor! - com os braços no ar.
Será que o circo continua? Ou sou eu que não devo ligar?

quarta-feira, setembro 22, 2004

Só sei que nada sei...

.

Ascending / Descending


Escher. Ascending / Descending

Psicologia de um vencido

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância.
A influência má dos signos do zodíaco

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme - este operário das ruínas -
Que o sangue poder das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra.

Anda a espreitar meus olhos para roê-los
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

Augusto dos Anjos

domingo, setembro 12, 2004

Enquanto espero...

Paul Almasy. Rock 'n Roll sur les Quais de Paris
Dança comigo?

sexta-feira, setembro 10, 2004

Oração para antes de nascer

Ainda não nasci; oh, escutai-me.
Não deixem que o vampiro, a ratazana, e o diabo coxo se cheguem
[a mim.]

Ainda não nasci; consolai-me.
Temo que a raça humana com altas paredes me emparede,
com fortes drogas me entonteça, com hábeis mentiras me iluda.
em negros potros me torture, em banhos de sangue me imirja.

Ainda não nasci; dai-me
água que me embale, relva que para mim cresça, árvores que falem
comigo, pássaros que para mim cantem, e uma branca luz
no fundo da minha alma para guiar-me.

Ainda não nasci; perdoai-me os pecados que em mim o mundo há-de
[pecar, as minhas palavras]

quando elas por mim falarem, os meus pensamentos quando me pensarem
a minha traição engendrada por traidores fora de mim,
a minha vida quando matarem com as minhas
mãos, a minha morte quando me viverem.

Ainda não nasci; ensaiai-me
nos papéis que devo representar e nas deixas que devo pegar quando
os velhos me ralharem, os burocratas me dirigirem, as montanhas
me franzirem o rosto, amantes se rirem de mim, as brancas
ondas me chamarem à loucura e o deserto chamar
à perdição e o mendigo recusar
a minha esmola e os meus filhos me amaldiçoarem

Ainda não nasci; Oh, escutai-me,
não deixem que o homem que é besta-fera ou o que se pensa Deus chegue perto de mim.

Ainda não nasci; oh, enchei-me
de força contra os que hão-de congelar
a minha humanidade, hão-de reduzir-me a um letal autómato,
farão de mim um dente de engrenagem, uma coisa
com rosto, uma coisa, e contra todos os
que dissiparão a minha integridade, me
soprarão como um cardo seco daqui para
ali e dali para aqui e aqui
como água me hão-de ter nas
mãos para desperdiçar-me
Não os deixem fazer de mim uma pedra, não os deixem
[desperdiçar-me]

E se assim não for, matai-me.

Louis Macneice
(Tradução de Jorge de Senna)

quarta-feira, setembro 08, 2004

Terá isto algum nexo?

Sexo. Sexo. Sexo - terá isto algum nexo? Se sim, digam-no declaradamente, por escrito, com impresso e envelope e selo passado pela língua, depois pela mão. Escrevam para uma morada qualquer da Rua Escondida numa Floresta Amorosa. Se não, também de escrever precisarão. Apresentem argumentos por que sim e por que não. Digam mais...qualquer coisa! O que fazem: com a mão; com o pé; com o traseiro; e porque não, com o dedo mindinho - pode valer mais do que muitos dedos da mão. Sexo, sexo,sexo - terá isto algum nexo? Façam daqui vossa a palavra. Do que pensam, do que julgam, do que censuram ou ainda do que é que aturam. E mais não digo. Uma mão afaga-me o clítoris do desaforo e fica sensível como o da Rititi que já o tem.... Sexo terá afinal nexo? Todo. O sexo. Nexo. Do Mundo. Já disse, certamente, Freud e eu concordarei também.

O Rosto

" Imagina que vivias num mundo onde não existissem espelhos. Sonharias com o teu rosto, imaginá-lo-ias como uma espécie de reflexo exterior do que houvesse em ti. E depois, supõe que, aos quarenta anos, te mostravam um espelho. Imagina o teu pavor. Terias visto um rosto totalmente estranho. E terias percebido nitidamente aquilo que te recusas a admitir: o teu rosto não és tu."

Milan Kundera. A Imortalidade. 4ª edição. Lisboa. Publicações Dom Quixote. 2001. p. 37

terça-feira, setembro 07, 2004

A janela está aberta


De 28 de Agosto a 12 de Setembro decorre o 16ºFestival Internacional de fotojornalismo. Muitos fotógrafos apresentam as (suas) melhores imagens de vários acontecimentos que se sucedem pelo Mundo. Melhor nem sempre significa bom. Neste caso, por vezes, o positivo fica pela mensagem contida na imagem e nos sentimentos (de questionamento) que poderão desencadear em cada um de vós. Em alguns de nós o outro continua a construir-se, num mundo que aparece, parece, como já não sendo o nosso; o de outro a conter o outro indivíduo. Que não deixa de ser um pouco de todos nós.
Ami Vitale é uma das fotógrafas presentes neste evento. Nascida nos Estados Unidos da América, tem desenvolvido o seu trabalho por inúmeros países: Angola, Guiné-Bissau, Argentina, entre outros. Prémios, realço o recebido o ano passado: prémio Canon - a mulher fotojornalista de 2003. Ultimamente tem-se focado no problema de Caxemira e no quotidiano violento da população.
A janela está temporariamente aberta.

Eu sei, mas não devia

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos
e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor.

E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas logo se acostuma acender mais cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.
E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos.
E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz,
aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
A lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.

E a ganhar menos do que precisa.
E a fazer filas para pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes.
A abrir as revistas e a ver anúncios.
A ligar a televisão e a ver comerciais.
A ir ao cinema e engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição.

As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
A luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias da água potável.
A contaminação da água do mar.
A lenta morte dos rios.

Se acostuma a não ouvir o passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães,
a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.

Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui,
um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.

Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo
e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se
da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta,
de tanto acostumar, se perde de si mesma.

Marina Colasanti

domingo, setembro 05, 2004

Estamos no século...da evolução da merda

Filhos da puta de guerrelheiros. Cabrões de tropas Russas. Merda para a Tchetchénia. Que se foda a puta da independência. Foda-se para o Putin. Caralhóides de armas e bombas. Avionetas e helicópteros. Metam tudo no cú e façam-se explodir de merda. Foda-se! Já disse.


quarta-feira, setembro 01, 2004

Análise de conteúdo

Os meus dias não têm sido fáceis. Mas que dificuldade é esta de vivermos? Existem actualmente muitos peritos sobre o assunto. E muitos livros, também. Mas eu ligo-lhes pouco, confesso. Deixem-me ao menos viver à minha maneira. Nem que não seja a melhor para muitos. Mas é minha. A vida.

Trabalho num bairro social que, sem ser dos mais problemáticos, contém todos os problemas sociais de qualquer bairro do género: baixos índices de escolaridade e elevados índices de emprego precário, de desemprego e delinquência juvenil.
Em tempos próximos tive a oportunidade de falar com a mãe de cinco filhos em idade escolar. Transcrevo de memória o diálogo estabelecido:

D. Maria: Acho que estou grávida.
Eu: Como é que sabe? Já fez algum teste?
D. Maria: Não tenho dinheiro para comprar o teste, senhora. Faltou-me aquilo, aquilo que a senhora sabe.
Eu: Sim. E então?
D. Maria: Sabe, já tenho cinco filhos em casa... Nós não temos muito dinheiro e...
Eu: E... o que é que pensa fazer?
D. Maria: Olhe, nem tenho dormido nos últimos dias. Não sei o que fazer à minha vida.
(chora compulsivamente)
Eu não posso ter mais filhos, senhora! O meu marido é pedreiro e nem sempre o patrão lhe paga... e eu trabalho na casa de um senhora ali em Telheiras. Aquela pensão que dão aos miúdos é uma miséria. Não dá para nada, senhora. A casa que me deram é tão pequena que só visto. Só visto, senhora. Tenho três a dormir no chão da sala...

Eu:Pois. Acredito que é difícil. O que é que pensa fazer?
D. Maria: Senhora, eu estou muito mal. Vou ter de abortar, senhora. (chora e coloca as mãos na cara)
Eu: Não faça isso. Já pensou bem?
D. Maria: Eu não queria fazer, eu não queria fazer. Já é o terceiro, senhora. E num deles fui parar ao hospital. Pedi a uma vizinha que chamasse a ambulância porque o meu marido, o Manel, não queria levar-me ao hospital. Sabe lá a minha vida...
Eu: Já falou com o seu marido sobre o que está a pensar fazer?
D. Maria: Oh! Ele quer lá saber disso! Ele não quer que eu faça, mas eu também não, senhora! Não é ele que tem de lhes dar de comer... de os vestir, de ir à escola... Há meses que nem lhe vejo o ordenado, senhora. Nem vejo...
Eu: Acredito. Sei que já não resolve nada, mas por que é que não tomou a pílula?
D.Maria: Oh! Sabe, eu não sabia nada que existia isso. A minha mãe e a minha tia nunca me disseram nada. Foram umas vizinhas que tinham mais ao menos a minha idade que falaram-me desses comprimidos, ainda eu namorava com o Manel. Comprei aí umas caixas ao princípio mas depois o dinheiro não chegava...
Eu: Mas o Sr. Manuel também pode usar algo para evitar...
D.Maria: Oh, senhora! Ele quer lá isso! Vá lá dizer-lhe alguma coisa... Eu já tenho tomado, às vezes, os tais comprimidos. Mas aquilo é barato? Para a senhora até pode ser... Eu tenho cinco filhos para alimentar e vestir! E tanto que deixo ali no Sr. António em coisas que compro para a escola. Nem a senhora sabe...
(começa a chorar novamente, coloca mais uma vez as maõs sobre a cara)
Eu: Pouco consigo dizer.
D. Maria: Ai meu Deus! Desculpe estar aqui a incomodá-la, senhora. Eu não quero fazer um aborto. Falam eles na televisão de vida e que matamos os filhos. Eu não mato os meus filhos, senhora! Se há coisa que gosto é de ver os meus filhos felizes mas eu não posso ter mais um. Acha que com os 60 contos que ganho mais outros tantos do meu Manel dá para alguma coisa? Se não fosse eu... que tantos sacrifícios já faço.
Eu: Mas tem dinheiro para fazer o aborto?
D. Maria: Senhora! Tenho lá eu 120 contos, ou não sei quantos euros, para o fazer! Senhora, vou ter de pedir dinheiro à minha vizinha Albertina. Ela deixa-me pagar nuns meses. Mais um problema. Mas que posso eu fazer?
Eu: E onde é que a senhora está a pensar ir?
D. Maria: É numa senhora do bairro da Graça. Onde já fiz um. Ela até leva barato mas quer tudo a pronto. Não aceita cheques. Lá dentro é tudo muito escuro e há lá tanta rapariguinha nova, tanta que eu vi da última vez que lá fui. Até metia dó, senhora... tão novinhas, algumas sozinhas. Uma desgraça, sabe. Nem sabem as pessoas o tanto que custa pensar nisto. A ela, à aborteira, já a vi para aí umas duas vezes perto da casa da minha patroa, ali em Telheiras, toda bem vestida. Qunado me viu até virou a cara.
Eu: Já falou com o seu médico de família?
D.Maria: Falei sim senhor. Fui para lá chorar como estou aqui agora, senhora. Ele disse-me para fazer o que achasse melhor para a minha vida mas que tentasse tudo para não o fazer. Eu bem tento. Nem queira saber o que pensei. Nem durmo há uma semana (chora e coloca as mãos na cabeça)
Eu: Pois eu também lhe digo o mesmo. Realmente tem poucos ou nenhuns apoios para tomar uma decisão diferente. Pouco mais tenho a dizer...Caso decida abortar, tem aqui o meu número de telefone para o qual poderá ligar caso tenha alguma complicação. Irei consigo ao hospital, caso necessite.

Considerações breves: sou a favor da vida e sou contra o aborto, como muitos como eu apoiam a descriminalização e a despenalização de um acto que para qualquer mulher é SEMPRE UMA DECISÃO DIFÍCIL: ABORTAR. É uma chatisse falar deste assunto para quem não quer ver e é fulcral para quem contacta com realidades que não dá jeito mostrar ao país que se quer europeu. Pois é, mas tem de ser.